Vampirismo clínico no cinema: entre a realidade e o sobrenatural

O cinema sempre encontrou no mito do vampiro uma fonte inesgotável de narrativas. Desde os tempos do expressionismo alemão, com Nosferatu (1922), até os filmes modernos de terror gótico, a figura do vampiro evoluiu e assumiu diferentes formas. Contudo, um subgênero menos explorado, mas extremamente intrigante, é o do vampirismo clínico. Este conceito desloca o vampiro do mundo sobrenatural para o campo da psicologia e da psiquiatria, explorando o fenômeno como um distúrbio real e não como uma criatura mítica. Filmes como Martin (1977), de George A. Romero, The Addiction (1995), de Abel Ferrara, e The Transfiguration (2016), de Michael O’Shea, são algumas das produções que mergulham nesse universo ambíguo e perturbador.

O que é o vampirismo clínico e como ele afeta as pessoas

O vampirismo clínico, também conhecido como síndrome de Renfield, é um distúrbio psiquiátrico raro em que o indivíduo sente uma necessidade compulsiva de consumir sangue humano ou animal. Nesse sentido, essa condição pode estar ligada a traumas psicológicos, impulsos sádicos ou mesmo a um comportamento fetichista. Alguns estudiosos da psiquiatria relacionam essa síndrome a transtornos como a esquizofrenia e a psicopatia, pois os portadores podem desenvolver um comportamento antissocial e, em casos extremos, cometer atos violentos.

O tema desperta fascínio e repulsa, pois toca em tabus fundamentais da sociedade, como o consumo de sangue e a perda da identidade humana. Ao ser transportado para o cinema, o vampirismo clínico ganha um caráter ainda mais perturbador, pois abandona os elementos clássicos do mito e se aproxima de um horror mais visceral e psicológico.

Martin (1977): a primeira incursão do vampirismo clínico no cinema

Considerado o primeiro filme a abordar o vampirismo clínico de forma séria, Martin (1977), de George A. Romero, é um divisor de águas. Diferente das representações tradicionais do vampiro, Martin é um jovem problemático que acredita ser um vampiro real. No entanto, sem presas ou poderes sobrenaturais, ele ataca suas vítimas de maneira brutal, sedando-as antes de consumir seu sangue com lâminas de barbear.

O filme cria uma atmosfera de dúvida: Martin é realmente um vampiro ou apenas um jovem mentalmente perturbado? Romero brinca com a linha tênue entre realidade e fantasia, utilizando flashbacks e o contraste entre a visão subjetiva do protagonista e a frieza do mundo real. Nesse sentido, Martin estabelece um modelo para futuras produções do subgênero, onde o vampiro não é uma entidade imortal, mas sim uma vítima de sua própria psique.

As características essenciais dos filmes sobre vampirismo clínico

Os filmes que exploram o vampirismo clínico possuem elementos distintos que os diferenciam dos tradicionais filmes de vampiro. Algumas características recorrentes incluem:

  • Ausência de elementos sobrenaturais: Em vez de criaturas místicas, os protagonistas são humanos comuns com uma fixação pelo consumo de sangue.
  • Protagonistas psicologicamente instáveis: Os personagens centrais frequentemente sofrem de distúrbios mentais, o que torna sua jornada mais dramática e menos fantasiosa.
  • Realismo cru e cotidiano: Os filmes são filmados com uma abordagem realista, muitas vezes com cinematografia sóbria e locações urbanas decadentes.
  • Narrativa ambígua: O público nunca tem certeza absoluta se o protagonista é realmente um vampiro ou apenas alguém com uma doença mental grave.
  • Uso da violência de forma realista: As cenas de ataque são filmadas de maneira crua, sem a estilização típica do horror sobrenatural.
Christopher Walken também integra o elenco de O Vício, o filme aborda uma linha tênue entre o real e o sobrenatural. (Foto: Divulgação)
Christopher Walken também integra o elenco de O Vício, o filme aborda uma linha tênue entre o real e o sobrenatural. (Foto: Divulgação)

O vampirismo clínico no cinema contemporâneo: The Addiction e The Transfiguration

Se Martin estabeleceu as bases do vampirismo clínico no cinema, filmes posteriores expandiram o conceito, explorando suas implicações filosóficas, psicológicas e sociais. Entre essas produções, The Addiction (1995), de Abel Ferrara, e The Transfiguration (2016), de Michael O’Shea, se destacam por suas abordagens introspectivas e realistas, trazendo novas camadas à representação do “vampiro do mundo real”.

Em The Addiction, o vampirismo é usado como uma metáfora direta para a dependência química. A protagonista, Kathleen (Lili Taylor), é uma estudante de filosofia mordida por um vampiro, o que a leva a desenvolver uma necessidade incontrolável de consumir sangue humano. A partir desse ponto, o filme mergulha em um universo de reflexões filosóficas e existenciais, questionando a natureza do mal, a culpa e a capacidade humana de resistir aos próprios instintos destrutivos.

Ferrara constrói um paralelo explícito entre o vampirismo e o vício em drogas, algo que se reflete na estética do filme: rodado em preto e branco, ele evoca o realismo sujo do cinema independente dos anos 90, ao mesmo tempo que dialoga com o cinema noir e o existencialismo europeu. Kathleen passa a enxergar sua condição como uma inevitável corrupção de sua própria humanidade, mas ao mesmo tempo, há momentos em que ela se entrega ao prazer e ao poder que seu novo “vício” proporciona. Como em muitos filmes do diretor, a religiosidade também tem um papel fundamental, reforçando a dualidade entre pecado e redenção, desejo e culpa.


A Transfiguração aborda o vampirismo clínico de uma forma muito realista e faz referências a inúmeros filmes. (Foto: Divulgação)
A Transfiguração aborda o vampirismo clínico de uma forma muito realista e faz referências a inúmeros filmes. (Foto: Divulgação)

A Transfiguração e o conceito do vampirismo clínico marginalizado

The Transfiguration leva o conceito do vampirismo clínico para um contexto social ainda mais marginalizado. O filme acompanha Milo (Eric Ruffin), um jovem negro que vive em um conjunto habitacional degradado de Nova York. Órfão e socialmente isolado, Milo é obcecado por histórias de vampiros e acredita que ele mesmo pode ser um. Diferente dos vampiros aristocráticos e sedutores da ficção clássica, Milo se alimenta de sangue de maneira crua e metódica, como um assassino em série meticulosamente planejando seus ataques.

O filme combina uma abordagem hiper-realista com referências diretas a clássicos do gênero. Milo assiste Martin em uma das cenas, sugerindo uma conexão entre sua própria jornada e a do personagem de Romero. Contudo, ao contrário de The Addiction, que abraça uma perspectiva filosófica, The Transfiguration se inclina para o drama social. O vampirismo aqui não é apenas uma compulsão, mas também um mecanismo de fuga de uma realidade opressora. O filme se pergunta: Milo é um monstro ou apenas um jovem perdido tentando encontrar sentido para sua existência?

Ambos os filmes compartilham a característica fundamental do vampirismo clínico no cinema: a ambiguidade entre a realidade e a ilusão. Nem Kathleen nem Milo possuem poderes sobrenaturais evidentes, mas sua necessidade de sangue e sua crença na própria condição vampírica os tornam predadores humanos. Nesse sentido, essa dúvida perpétua sobre a natureza de seus protagonistas é o que torna esses filmes tão intrigantes e perturbadores.

Martin apresenta um vampiro que utiliza seringas e giletes para atacar suas vítimas. (Foto: Divulgação)
Martin apresenta um vampiro que utiliza seringas e giletes para atacar suas vítimas. (Foto: Divulgação)

Entre o horror e o drama: onde se encaixam esses filmes?

A classificação desses filmes oscila entre o horror psicológico e o drama. Enquanto muitos possuem momentos de tensão e violência gráfica, a essência dessas histórias reside mais no estudo de personagens do que no medo visceral. Por isso, são frequentemente categorizados como dramas com elementos de horror, em vez de terror puro. Eles compartilham mais características com filmes de estudo psicológico, como Taxi Driver (1976), do que com Drácula (1931), de Tod Browning.

Além disso, esses filmes costumam ser intimistas, explorando não apenas o comportamento dos protagonistas, mas também seu sofrimento e isolamento. O horror aqui não vem de uma ameaça externa sobrenatural, mas sim da própria mente dos personagens, da angústia de suas compulsões e do conflito entre seu desejo e sua humanidade. Sendo assim, essa abordagem humanizada faz com que muitos desses filmes sejam estudados não apenas dentro do cinema de horror, mas também no contexto de dramas psicológicos.

Outro fator que contribui para essa dualidade de gêneros é o tom narrativo e visual dessas produções. Diferente dos filmes de terror convencionais, que frequentemente recorrem a sustos e cenas exageradamente gráficas, o vampirismo clínico é abordado de forma mais sutil, criando uma atmosfera de tensão constante e incômodo emocional. Portanto, essa construção de suspense psicológico reforça a ambiguidade e a complexidade do subgênero.

O fascínio do público pelo vampiro realista

Uma das razões pelas quais esses filmes despertam tanto interesse é a forma como trazem o mito do vampiro para a realidade. Sendo assim, a ideia de que um vampiro pode ser apenas uma pessoa perturbada vivendo entre nós torna a narrativa ainda mais inquietante. Diferente do vampiro aristocrático e sedutor, o vampiro clínico pode ser um vizinho, um colega de trabalho ou um amigo, o que gera uma sensação de desconforto profundo.

Além disso, esses filmes desafiam nossa percepção do que é real e do que é fantasia. Eles questionam até que ponto a crença em algo pode moldar a realidade de uma pessoa e colocam o espectador em uma posição de juízo: devemos ver esses personagens como monstros ou como vítimas de sua própria mente?

Removendo elementos sobrenaturais

O vampirismo clínico no cinema oferece um olhar perturbador e profundamente humano sobre um mito antigo. Ao remover os elementos sobrenaturais, esses filmes exploram o horror psicológico de indivíduos à margem da sociedade, debatendo temas como loucura, solidão e compulsão. Portanto, obras como Martin, The Addiction e The Transfiguration continuam a provocar debates sobre a natureza do vampirismo e sua conexão com distúrbios mentais.

No fim das contas, talvez a verdadeira questão não seja se esses personagens são vampiros ou não, mas sim até que ponto o horror está enraizado na própria condição humana.

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Diego Almeida

Formado em Publicidade e pós graduado em Artes visuais. Admirador da cultura pop no geral, com objetivo em viajar por toda Europa em 1 mês apenas.

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