Esses dois filmes premiados sofreram boicote pelo mesmo motivo

Quando se fala sobre grandes clássicos do cinema, é inevitável mencionar Instinto Selvagem (1992) e O Silêncio dos Inocentes (1991). Ambos são obras que marcaram época, atravessaram décadas e se consolidaram como referências culturais. No entanto, esses filmes também compartilham uma polêmica em comum: enfrentaram boicotes de grupos LGBTQIA+ devido à representação de seus vilões. Catherine Tramell e Buffalo Bill, personagens centrais dessas produções, são retratados como pessoas desequilibradas, mas suas sexualidades também desempenham um papel significativo em suas narrativas, o que gerou uma série de críticas.

Vilões complexos: entre a psicologia e a sexualidade

Tanto Instinto Selvagem quanto O Silêncio dos Inocentes apresentam antagonistas profundamente complexos. Catherine Tramell, interpretada magistralmente por Sharon Stone, é uma escritora bissexual, manipuladora e extremamente inteligente. O filme explora sua sexualidade de maneira provocativa, mas também a associa à sua natureza calculista e possivelmente assassina.

Por outro lado, Buffalo Bill, vivido por Ted Levine, é um serial killer cuja obsessão é confeccionar um traje feminino com a pele de suas vítimas. Embora o roteiro deixe claro que ele não é uma pessoa transgênero, sua busca por transformação de gênero foi interpretada por muitos como um estereótipo prejudicial à comunidade LGBTQIA+.

Ambos os personagens se destacam por suas construções psicológicas elaboradas, mas é inegável que suas sexualidades desempenham um papel fundamental nas tramas. Essa relação entre sexualidade e desequilíbrio mental foi o principal ponto de crítica por parte de grupos LGBTQIA+, que viram nesses filmes uma perpetuação de estigmas já muito difundidos na sociedade.

Ted Levine é o vilão Buffalo Bill: o sociopata transgênero incomodou ativistas, havendo tentativa de impedir a realização de O Silêncio dos Inocentes. (Foto: Orion/Divulgação)
Ted Levine é o vilão Buffalo Bill: o sociopata transgênero incomodou ativistas, havendo tentativa de impedir a realização de O Silêncio dos Inocentes. (Foto: Orion/Divulgação)

Entenda os motivos pelo qual sofreram boicote

Durante o lançamento de ambos os filmes, o cinema apresentava uma representação LGBTQIA+ extremamente limitada e, muitas vezes, negativa. Em Instinto Selvagem, os protestos e boicote ao longa, se concentraram na ideia de que o filme reforçava estereótipos de que pessoas bissexuais eram perigosas, imorais e incapazes de relações saudáveis.

Os protestos contra Instinto Selvagem começaram muito antes de o filme chegar aos cinemas. Assim que ativistas LGBTQIA+ souberam que o roteiro de Joe Eszterhas chegaria às telas, a trama gerou indignação. O roteiro apresentou três mulheres lésbicas (interpretadas por Sharon Stone, Leilani Sarelle e Dorothy Malone) envoltas em uma aura de mistério, crime e ódio contra homens, além de uma psicóloga (Jeanne Tripplehorn) que aparentava estar igualmente ligada a esse submundo, o que muitos interpretaram como mais um reforço de estereótipos negativos sobre pessoas queer.

Para os ativistas, o roteiro parecia perpetuar a ideia de que personagens LGBTQIA+ só poderiam ser retratados como criminosos ou figuras sombrias no cinema. Quando as filmagens começaram em São Francisco, os protestos tomaram forma. Manifestantes se reuniram nas locações externas, utilizando apitos, tambores e outros objetos barulhentos para atrapalhar a captação de áudio da produção.

A estratégia visava comprometer o andamento das gravações e chamar a atenção para a forma preconceituosa com que as minorias sexuais eram frequentemente representadas em Hollywood. Mesmo com a pressão constante, o filme foi concluído, mas os protestos continuaram até o lançamento, evidenciando um descontentamento que marcou a recepção da obra.

Protestos, manifestações e boicote ao filme de Jonathan Demme

O Silêncio dos Inocentes enfrentou protestos por conta do personagem Buffalo Bill. Grupos como a GLAAD criticaram a associação entre sua obsessão de gênero e sua psicopatia. Em um contexto de pouquíssima representatividade transgênero no cinema, a figura de um assassino associado à disforia de gênero foi vista como altamente problemática.

Acusaram ambos os filmes de perpetuar narrativas que reforçavam preconceitos e estigmas, o que gerou campanhas de boicote e protestos durante suas estreias e em grandes premiações.


Catherine Tramell é uma assassina fria e bissexual: Instinto Selvagem também sofreu tentativa de boicote. (Foto: Divulgação/Tristar)
Catherine Tramell é uma assassina fria e bissexual: Instinto Selvagem também sofreu tentativa de boicote. (Foto: Divulgação/Tristar)

Atores e seus personagens

Sharon Stone entregou uma das performances mais icônicas de sua carreira em Instinto Selvagem. Sua Catherine Tramell é ao mesmo tempo sedutora e assustadora, uma mulher cuja sexualidade é usada como ferramenta de poder. Embora Stone tenha compreendido as críticas, ela defendeu a complexidade de sua personagem, afirmando que Catherine não podia ser reduzida apenas à sua orientação sexual.

Ted Levine, em O Silêncio dos Inocentes, também deu vida a um vilão marcante. Seu Buffalo Bill é desconcertante e aterrorizante, mas a interpretação não foi suficiente para evitar as críticas ao roteiro. O diretor Jonathan Demme, por sua vez, defendeu a obra, afirmando que Buffalo Bill não representava pessoas transgênero, mas sim um indivíduo profundamente perturbado. Mesmo assim, ele reconheceu que poderiam ter feito a representação de maneira mais sensível.

Controvérsia no Oscar 1992: boicote LGBTQIA+ contra O Silêncio dos Inocentes e Instinto Selvagem

Durante a cerimônia do Oscar de 1992, onde O Silêncio dos Inocentes se consagrou como o grande vencedor da noite, uma forte manifestação tomou conta do lado de fora do Dorothy Chandler Pavilion, em Los Angeles. Ativistas da comunidade LGBTQIA+ protestaram contra a forma como o filme retratava um personagem transgênero como vilão e assassino psicopata, o que, segundo eles, reforçava estereótipos negativos sobre pessoas trans. Os manifestantes alegavam que a representação de Buffalo Bill contribuía para a perpetuação do preconceito, associando características de gênero não normativas a comportamentos violentos e perigosos.

Os protestos ganharam ainda mais força devido ao lançamento de Instinto Selvagem nos cinemas naquele mesmo mês. O filme, estrelado por Sharon Stone, também foi alvo de críticas por parte de grupos LGBTQIA+, que consideravam sua narrativa prejudicial ao reforçar estereótipos sobre a bissexualidade, retratando personagens queer como manipuladores e propensos ao crime. A polêmica gerou debates acalorados na imprensa e entre especialistas em cinema, colocando em questão como Hollywood lidava com a diversidade em suas produções.

Apesar da pressão, O Silêncio dos Inocentes marcou história ao ganhar os cinco principais prêmios da Academia, mas não sem carregar consigo as marcas de uma controvérsia que ressoou por décadas. A atriz Jodie Foster ainda não havia se assumido, mas se posicionou a favor das manifestações e disse ser receptiva a qualquer manifesto da causa LGBTQIA+.

Os protestos que ocorreram do lado de fora do Dorothy Chandler Pavilion durante a entrega do Oscar em 1992. (Foto: Vinnie Zuffante/Getty Images)
Os protestos que ocorreram do lado de fora do Dorothy Chandler Pavilion durante a entrega do Oscar em 1992. (Foto: Vinnie Zuffante/Getty Images)

Roteiros marcantes e o impacto nas bilheterias

Apesar das polêmicas, ambos os filmes são exemplos de roteiros bem construídos e cheios de nuances. Em Instinto Selvagem, o suspense e os jogos psicológicos entre Catherine e o detetive Nick Curran (Michael Douglas) mantêm o espectador intrigado até o último minuto. O roteiro de Joe Eszterhas explora temas como manipulação, desejo e poder de forma provocativa e cativante.

O Silêncio dos Inocentes, baseado no livro de Thomas Harris, apresenta um roteiro que equilibra horror e suspense com maestria. A dinâmica entre Clarice Starling (Jodie Foster) e Hannibal Lecter (Anthony Hopkins) é o ponto alto da trama, enquanto Buffalo Bill serve como uma figura sombria que impulsiona a narrativa.

O sucesso comercial e crítico de ambos os filmes foi estrondoso. Instinto Selvagem arrecadou cerca de 352 milhões de dólares mundialmente, enquanto O Silêncio dos Inocentes levou para casa os cinco principais prêmios do Oscar (Melhor Filme, Diretor, Ator, Atriz e Roteiro Adaptado).

Sharon Stone com Leilani Sarelle: a atriz afirmou que a orientação sexual era algo casual, mas essencial para o contexto do filme. (Foto: Divulgação/Tristar)
Sharon Stone com Leilani Sarelle: a atriz afirmou que a orientação sexual era algo casual, mas essencial para o contexto do filme. (Foto: Divulgação/Tristar)

O impacto na comunidade LGBTQIA+ e a percepção atual

Na década de 1990, a comunidade LGBTQIA+ já enfrentava desafios significativos, como o preconceito e a crise da AIDS, que estigmatizava ainda mais a população. A representação de personagens LGBTQIA+ como vilões perigosos contribuiu para reforçar preconceitos em um período tão sensível.

Hoje, tanto Instinto Selvagem quanto O Silêncio dos Inocentes são vistos com um olhar mais crítico. Embora muitos os reconheçam como obras-primas em seus gêneros, os debates sobre inclusão e diversidade no cinema frequentemente revisitam a representação de personagens LGBTQIA+ nesses filmes. As narrativas servem como lembretes do impacto que a representação midiática pode ter na vida real.

Percepções sociais

Instinto Selvagem e O Silêncio dos Inocentes são exemplos claros de como o cinema pode ao mesmo tempo refletir e moldar percepções sociais. Embora tenham enfrentado críticas e boicote na época de seus lançamentos, seus legados permanecem inquestionáveis. Esses filmes não apenas marcaram a história do cinema, mas também abriram espaço para discussões importantes sobre representação e responsabilidade. Em um mundo em constante evolução, eles servem como lembretes do poder da narrativa e da necessidade de contar histórias com mais empatia e diversidade.

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